Fatinha P.O.V - Sábado, 13:45 p.m.
Começou a chover de novo. Pelo menos isso. Enquanto o tempo estiver ruim, eu não preciso sair. Não sei quem sanciono essa lei de que menina de 16 anos são obrigadas a sair todos os dias do final de semana. Se eu estou a fim de ficar em casa, com meus DVDs, meus livros ou simplesmente fazendo nada, a minha família já pergunta se eu estou doente. Pior do que isso. Passam-se cinco minutos e minhas amigas começam a aparecer ou telefonar, como se o fato de eu ter dito que queria ficar em casa tivesse sido uma espécie de brincadeira.
Eu me pergunto: sair pra que? Para ver as mesmas caras? Para brincar de espelho, já que todas as pessoas se vestem absolutamente iguais, como se fosse uma espécie de uniforme social? Engraçado é que essas mesmas pessoas fazem abaixo-assinado na escola para que possamos ir com roupas informais... Se eu fosse a diretora, eu concordaria. Pelo menos, as meninas não depredariam mais o uniforme cortando as mangas para ficarem com as ''asinhas de fora'', e os meninos parariam de levar suspemsão por aparecerem na aula de chinelo.
Só o que faltava, vou ter que levantar da minha cama quentinha para atender ao telefone. Minha mãe está berrando daquele jeito dela que separa e prolonga sílaba por sílaba do meu nome: ''Faaaaaa-tiiiiii-maaaaaa...''
Argh. Como se não bastasse esse nome esquisito que me colocaram, ainda tenho que ouvi-lo gritado! Quantas vezes vou ter que repitir? Meu nome é FATINHA! F-A-T-I-N-H-A. E eu finjo que não é comigo quando me chamam de Fatima. Eu só vou atender dessa vez para que o resto do mundo que ainda não ouviu o berro da minha mãe não descubra que por trás da Fatinha existe um nome estranho desses.
[...]
Obrigada, horário de verão! Normalmente eu não gosto do marco inicial desse horário, já que somos obrigados a adiantar o relógio e com isso ganhamos um dia de apenas vinte e três horas. Mas, desta vez, eu achei pouco e bom.
Mais cedo, no telefone, era obviamente a Helena. Eu gosto muito da Helena, a gente é amiga desde criança e tal, mas, sinceramente, de uns tempos pra cá, parece que estamos andando em direções opostas. Claro que, como sempre, ela estava completamente cheia de vontade de sair, especialmente por causa do fim de semana prolongado, já que o nosso colégio emendou o feriado de 12 de outubro.
Não entendo como ela consegue... A gente foi quarta ao aniversário da Joana, na quinta no cinema assistir a O jardineiro fiel, na sexta fomos ao ensaio da banda do irmão do Renato e, ontem, todas as pessoas de Pelo Horizonte que não viajaram (ou seja: a Helena, o Rennato e a Patricia) vieram para cá ver DVD. Caramba! Será que ela não sente falta de ficar em casa fazendo nada, não?
Tá, eu não sou antissocial, nem tenho nenhum destes desvios comportamentais de que a Veja vive falando, mas tem que hora que sair cansa, né? Enche o saco essa coisa de ter que colocar roupa (tomando o cuidado de não repitir a mesma por, pelo menos, três semanas), maquiagem, pedir dinheiro pro pai, ouvir sermão sobre os perigos que existem no mundo, encontrar as mesmas pessoas que eu vejo todos os dias, ter que ficar fazendo carinha boa para não ter que aturar a todo minuto alguém vindo perguntar o motivo da minha braveza... Ufa! Prefiro sinceramente ficar no meu quarto, meu castelinho encantado, com meus livros, DVDs, computador...
E foi isso que eu tentei explicar pela centésima vez para a Helena quando el tentou me convenser a sair mais essa noite. O Sr. Gustavo é daqueles pais chatos, liga para o meu pai a cada saída dela para perguntar se eu fui também. Será que ele está pensando que nós somos gêmeas siamesas? Que uma só pode ir aonde a outra for? Deixa eu te contar uma coisa, Sr. Gustavo, não é assim não, viu? O tempo da escravidão já passou faz tempo, se você quiser me contratar para ser dama de companhia da sua filha, pode ir abrindo a carteira e deixar que o dinheiro venha até minhas mãos. Trinta reais por hora, porque só assim para dar conta do pique da Helena!
Só que eu acho que, se eu dependesse disso pra ganhar dinheiro, podia desistir. A própria Helena tem argumentos bem mais fortes. Em primeiro lugar, a voz fininha dela... à primeira vista todo munda acha ela delicadinha, mas, deepois de uns dez minutos, dá vontade de apertar o ''stop'', já que é tão aguda que a impressão que passa é que vai furar nosso ouvido! Como se não bastasse, a Helena é filha única. Isso significa que nunca teve um irmão que se recusasse a emprestar qualquer coisa a ela, e com isso, ela não desenvolveu a capacidade de aceitar um não.
Como esperado, ela veio com toda aquela ladainha à qual eu já estou mais do que acostumada a ouvir: ''Amanhã é feriado, a gente pode dormir até tarde...'', ela disse com a tal vozinha que, a cada segundo, afina mais.
Eu lembrei a ela que o meu irmão, com certeza, iria aparecer bem cedinho na minha casa junto com os meus três sobrinhos e que a diversão preferida deles é brincar de acordar a Tia Fatinha.
Aí ela disse: ''Mas ontem você já ficou na sua casa, todos nós ficamos aí com você vendo DVD, ficar todo dia dentro de casa envelhece...''
Eu nem tive tempo de responder, e ela continuou: ''Se você não for, eu vou ter que mentir para o meu pai, você vai ter que pedir para o seu pai mentir também, e você não vai querer dar inicio a toda essa mentiraiada, vai?''.
Eu disse a ela que a Julia tinha viajado para a casa dos avós no interior e que era por esse motivo que ela preferia ir comigo...
Aí ela apelou: ''Fatinha! Eu estou tendo uma premonição! Tenho certeza de que o amor da sua vida vai estar lá e você vai perder a chance de conhecê-lo! Depois vai passar a vida inteira solteirona e solitária, só porque não quis sair comigo esta única noite!''.
Eu lembrei a ela que ''esta única noite'' foi a mesma que ela falou nas últimas 78 vezes que tentou converser-me a sair, que essa era a 79ª vez que ela dizia que esta noite ia ser única e que, se o amor da minha vida estivesse em um bar desses, com certeza ele não seria o amor da minha vida. O verdadeiro amor da minha vida naquele momento deveria estar em casa, lendo, ou quem sabe aproveitando a véspera do feriado para fazer alguma pesquisa importante na internet ou nas enciclopédias que ele deve ter...
Quando ela sacou que eu estava falando realmente sério e que não estava a fim de sair, ela resolveu barganhar. ''Eu pago o táxi sozinha'', ela disse com uma voz desesperada. ''E pago também a sua entrada e consumação no bar''.
Falei que eu não estava à venda e pronto. Foi aí que ela deu a cartada final. Caiu no choro e, chorando, me implorou, daquele jeito que ela devia ensaiar na frente do espelho: ''Pooor faaaaavoooor... eu não pediria se eu não quisesse ir muitooooooo... o Mateus vai estar lá e vai acabar ficando com aquele horrorosa da Marcela se eu não estiver lá para impedir... Poooor favoooor Fatinhaaaaa...''.
Esse ''por favor Fatinha'' é bem o toque final. Sempre faz isso para conseguir algo.
Depois disso, cansei e resolvi ir lovo, senão ela ia ficar naquele chororô a noite inteira, e, se o Mateus ficasse mesmo com a Manuela, ela ia me jogar na cara isso pelo resto da minha vida!
Troquei rapidinho de roupa, prendi o cabelo e fui para a casa dela, que é na rua logo abaixo da minha.
Chegando lá, a menina estava com o guarda-roupa inteiro jogado em cima da cama, sem conseguir escolher o que vestir.
Sugeria umas três blusinhas, ela pôs defeito nas três. Aí, eu disse que, se ela não se arrumasse em meio minuto, eu iria embora e ela podia até chorar sangue que eu não voltaria atrás. Ela tratou de vestir qualquer coisa, ficou mais um tempão no banheiro se arrumando e, finalmente, pegou a bolsa. O pai dela passou pela gente no corredor e avisou que queria que ela estivesse em casa pontualmente à uma hora da manhã, idependente do fato de amanhã ser feriado.
Finalmente, conseguimos sair e chegamos ao ponto de taxi. Essa história de taxi, minha mãe não gosta muito. Ela prefere levar e buscar. Mas só que leva e busca reclamando! Então, quando ela não está em casa, eu acabo pegando um taxi mesmo. O ponto é aqui do lado, os motoristas todos já me conhecem e , além disso, eu sempre anoto a plava do carro e mando como mensagem para o celular do meu pai.
Quando a gente chegou ao tal bar, já era umas dez e meia da noite. Entramos, avistamos um pessoal conhecido, compramos um refri, a Helena me fez dar umas quinhentas voltas para acharmos o Mateus, e finalmente o encontramos. Ele estavam bem em frente às caixas de som, ou seja, o tamanho do barulho estava de ensurdecer. Eu comecei a reclamar, e a Helena resolveu ir falar com ele, depois de um tempão ensaiando. Eu fiquei surpresa. O Mateus até que foi bem simpático, se é que dá pra ser simpático tendo que gritar para poder ser ouvido. Conversou uns assuntos lá e, de repente, lembrou que hoje comçaria o horário de verão.
''Ih, é agora!'', ele falou, mexendo no relógio. ''Meia-noite, já está na hora de adiantar uma hora.''
A Helena olhou para mim com uma cara de susto tão grande, que eu até achei que uma formina lava-pés tiesse subindo pela coxa dela. Só que aí ela virou para o Mateus, disse que a gente ia dar uma volta e largou o menino meio sem entender a pressa sozinho no meio da pista. Nem eu estava entendendo... Até que a Helena disse, já na porta, que o pai dela havia pedido para que ela estivesse em casa à uma da manhã! Com o horário de verão, já era uma hora.
Obrigada horário de verão! Prometo que nunca mais reclamo da sua existência! Já a Helena deve estar chorando até agora... No momento em que a gente estava saindo do bar, cruzamos coma Marcela, que estava chegando naquele minuto. É, acho que em vez dela desperdiçar a lábia comigo, deveria desenvolver uma tática para amansar o pai. A Cinderella já saiu de moda há muito tempo...
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